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Por uma cultura democrática no Judiciário

  • Hugo C. Melo Filho
  • 21 de fev. de 2019
  • 7 min de leitura

Os arranjos institucionais promovidos na década de 1970, em um regime autoritário, não permitem a construção de uma cultura democrática no Judiciário brasileiro e inviabilizam relações externas democráticas, que propiciem maior transparência institucional e, consequentemente, maior confiabilidade.


Hugo Cavalcanti Melo Filho


No trecho da University Avenue entre Osgoode Hall e a Courthouse, em Toronto, podem ser vistos os McMurtry Gardens of Justice, onde um conjunto de seis esculturas celebra o Estado de Direito e a Administração da Justiça em Ontario. As esculturas são chamadas “Igualdade Perante a Lei’, “Liberdade de Religião”, “Liberdade de Expressão”, “O Estado de Direito é um Reflexo de Todos Nós” e “Os Pilares da Justiça”.


Os Pilares da Justiça, obra da renomada escultora britânica Edwina Sandys, foi a primeira a ser instalada, em 2007, bem em frente ao prédio de número 361 da University Street. A escultura capta a ideia fundamental de um sistema justo de justiça, representado por uma fachada de templo grego, com um frontão triangular clássico apoiado por duas filas de pilares em forma de homens e mulheres, apresentados como elemento-chave do sistema de justiça democrático. Homens e mulheres da comunidade são os pilares que sustentam o sistema de justiça, protegendo assim a instituição que nos protege de leis arbitrárias ou julgamentos aleatórios. A escultora omitiu intencionalmente um dos pilares, permitindo assim que qualquer pessoa imagine estar no espaço vago e servindo ao sistema de justiça.


O monumento é simples e belo; a mensagem é direta: um sistema de justiça democrático só pode existir pela participação dos cidadãos aos quais serve, que, em última análise, o sustentam. Mais ainda, a imagem nos indica que o exercício democrático da jurisdição somente pode ocorrer se apoiado em uma cultura democrática. E uma cultura democrática só se desenvolve em um ambiente em que haja convicções democráticas: práticas, ideias e valores democráticos [1].


A referência central da cultura política são as relações de poder e de autoridade, o conjunto de relações de dominação e sujeição, a partir das quais se estrutura a vida política. Daí o interesse em compreender de que maneira se associam cultura e estrutura políticas, isto é, quais os fatores culturais que se associam positivamente com instituições democráticas implantadas. Ou melhor, em que medida a cultura política democrática ajuda a modelar as instituições políticas ou, ainda, se a cultura é causa ou consequência do modo de governar as instituições [2].


De acordo com Larry Diamond [3], cultura política está longe de ser um fenômeno imutável. "Mudanças sociais e econômicas, mobilização social e cívica, prática institucional, experiência histórica [...] podem modificar ou gradualmente transformar os valores políticos predominantes, crenças e atitudes [...]". De qualquer modo, os padrões axiológicos não se alteram no mesmo ritmo das práticas e das instituições políticas. Os valores se modificam muito lentamente em uma sociedade. Por isso, há uma primazia dos fatores culturais sobre os estruturais, “justamente porque o cultural tem um maior grau de penetração e de persistência” [4]. Daí, a importância da cultura.


Não é possível estabelecer quais os padrões culturais que dão suporte a uma democracia estável. É necessário investigar de que maneira se edifica o aparato cultural sobre o qual descansam e se recriam certas instituições políticas propriamente democráticas [5], porque “mudanças no status [...] ou estabilidade da democracia raramente ocorrem sem algum visível envolvimento de uma mudança – ou não mudança – da cultura política” [6].


A despeito da discussão quanto ao peso específico que se atribua à cultura política como variável que influi na construção e consolidação de estruturas democráticas, não pode haver dúvida de que é necessário fomentar um padrão de orientações e atitudes propícias à democracia [7].


Boaventura de Sousa Santos [8] considera que a grande característica desse quadro é o predomínio de uma cultura normativista, técnico-burocrática, que se manifesta de múltiplas formas, entre elas o privilégio do poder e o distanciamento da sociedade.


As relações internas praticadas no Poder Judiciário brasileiro, hoje, são o resultado de uma fórmula idealizada há quarenta anos, em pleno regime militar. Não existe, portanto, uma cultura política democrática no Judiciário brasileiro. À arguta visão de Souza Santos, o fenômeno não passou despercebido:

"A organização judicial estruturada em forma piramidal controlada no vértice por um pequeno grupo de juízes de alto escalão, onde o prestígio e a influência social do juiz dependem de sua posição na hierarquia profissional, acaba perpetuando o ethos profissional dominante e fortalece o espírito corporativista, o que, na prática, contribui para um isolamento social do judiciário, fechando-o enquanto a sociedade em que se assenta vai se diversificando e torna-se cada vez mais plural".[9]


Assim como uma cultura política democrática ajuda a formar cidadãos que acreditem que democracia e igualdade política são objetivos desejáveis e que as instituições democráticas devem ser mantidas [10], esta mesma cultura, se desenvolvida no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, traria as mesmas consequências. Mas, como constata Sousa Santos [11], a nossa cultura judicial promove tratamento diferenciado entre os cidadãos, que deveriam ser vistos como titulares de iguais direitos e deveres. Ao contrário, reconhecem-se privilégios ao poder político no âmbito do Judiciário.


Por outro lado o distanciamento da sociedade é decorrência direta da incapacidade dos magistrados de interpretar a realidade, embora seja competente para interpretar o direito. Afirma Sousa Santos [12]:

"Como interpreta mal a realidade, o magistrado é presa fácil de ideias dominantes. Aliás, segundo a cultura dominante, não deve ter sequer ideias próprias, deve é aplicar a lei. Obviamente que não tendo ideias próprias tem que ter algumas ideias, mesmo que pense que as não tem. São as ideias dominantes que, nas nossas sociedades, tendem a ser as ideias de uma classe política muito pequena e de formadores de opinião, também muito pequena, dada a grande concentração dos meios de comunicação social. E é aí que cria um senso comum muito restrito com que se analisa a realidade".


Entre nós, é lugar comum se afirmar que os juízes não podem mais viver encastelados em torres de marfim [13]. Ocorre que estruturas internamente não-democráticas não podem produzir relações externas democráticas. Os arranjos institucionais promovidos na década de 1970, em um regime autoritário, não permitem a construção de uma cultura democrática no Judiciário e inviabilizam relações externas democráticas, que propiciem maior transparência institucional e, consequentemente, maior confiabilidade.


Não é por outra razão que nas pesquisas realizadas pela Fundação Getúlio Vargas, desde 2009, o Judiciário sempre aprece entre uma das instituições menos confiáveis. Segundo a última pesquisa “Índice de Confiança na Justiça do Brasil – ICJBrasil” da Fundação Getúlio Vargas - FGV [14], considerado o percentual de entrevistados que disseram confiar ou confiar muito nas instituições, o Judiciário, ao lado do STF, aparece em nono lugar, com 24%, à frente, apenas, dos sindicatos, do Congresso Nacional e dos partidos políticos e atrás das Forças Armadas, da Igreja Católica, das redes sociais, da imprensa escrita, das emissoras de TV, das grandes empresas e do Ministério Público.


Segundo os responsáveis pela pesquisa, "retratar a confiança do cidadão em uma instituição significa identificar se o cidadão acredita que essa instituição cumpre a sua função com qualidade, se faz isso de forma em que benefícios de sua atuação sejam maiores que os seus custos e se essa instituição é levada em conta no dia-a-dia do cidadão comum" [15]


A falta de confiança nas instituições é um grave problema para a democracia. O Estado democrático somente se pode basear nas instituições, porque são elas, segundo afirma Adam Przeworski [16], que garantem, com razoável margem de segurança, o equilíbrio dos interesses na competição democrática. Sem os compromissos institucionais, não se sustenta a democracia. E como crer no futuro do Estado, numa perspectiva democrática, se a fé nas instituições encontra-se abalada?


Está claro que não interessa aos atores políticos dominantes a alteração das condições hoje prevalecentes no Poder Judiciário, que terminam por delinear a visão quase sempre desfavorável que dele se forma na sociedade. Ao contrário, no último período foi acentuada a verticalização do sistema, com a concentração de poder nas cúpulas do Judiciário, como forma de reprodução e perpetuação da atual estrutura.


Não se pode classificar o quadro brasileiro como democrático. Os juízes são selecionados por concurso público, mas não existe grande preocupação com seu conhecimento interdisciplinar e crítico. No geral, são pouco politizados e eticamente engajados, têm alto apego à jurisprudência estandardizada e, em boa medida, administrativamente submissos aos “superiores hierárquicos”, o que mitiga sua independência. Há pouca sensibilidade para as desigualdades sociais, morosidade marcante, pouca afeição ao controle de constitucionalidade, relativa segurança jurídica. Os critérios promocionais são discutíveis, a escolha dos membros dos Tribunais é feita de forma acentuadamente política e os órgãos diretivos são eleitos pelas cúpulas dos Tribunais. A maioria dos juízes não participa das deliberações e sequer opinam na construção das normas internas das Cortes. Embora tenha na magistratura técnica o seu ponto forte, é estruturado de forma exageradamente burocrática, hierarquizada, marcada por controle funcional verticalizado [17]. A administração dos Tribunais é caracterizada por um grupo de poder restrito, marcado por fortes vínculos entre seus membros e pelo controle na admissão de novos membros, portanto um sistema oligárquico, que promove um isolamento social nefasto à contribuição do Judiciário para a democratização do Estado e da sociedade.


Acontece que não se sustenta mais o arranjo institucional hoje existente no Poder Judiciário brasileiro, conservador de uma cultura oligárquica incapaz de gerar relações externas democráticas. O primeiro passo para a democratização das relações externas do Poder Judiciário haverá de ser a democratização interna dos Tribunais, precedida de mudanças institucionais que venham a influenciar a cultura política, modificando-a.


Com efeito, fatores culturais afetam o progresso humano e às vezes o impedem, mas a ação política, ou outra forma de ação pode mudar ou eliminar obstáculos culturais ao progresso. Se é verdade que a cultura, a longo prazo, pode produzir instituições democráticas, não é menos verdade que, a curto prazo, mudanças institucionais, geralmente impelidas pela política, podem influenciar a democratização cultural [18].


A inadiável construção de um Judiciário democrático passa por profundas alterações institucionais, reforma do modelo de administração das cortes e do governo da magistratura hoje vigentes, ampliando-se as franquias democráticas no âmbito interno, impondo-se o dever de transparência, assegurando-se a liberdade de manifestação, a ampliação do acesso às informações, avaliações concretas da gestão, para um efetivo controle societal.


A democratização institucional do Judiciário tornaria a administração dos tribunais e o governo da magistratura mais accountable, aperfeiçoaria o relacionamento com a sociedade, e propiciaria a conformação de uma cultura democrática, num processo de alimentação recíproca, mais propriamente uma circulação: instituições democráticas favorecendo a produção de uma cultura democrática e esta consolidando e aprofundando a democracia institucional no Poder Judiciário brasileiro.


REFERÊNCIAS


[1] DAHL, Robert Alan (2001). Sobre a democracia. Trad. Beatriz Sidou. Brasília: Unb, p. 174.

[2] www.ife.org.mx/documentos/DECEYEC/la_cultura_politica_democratica.htm#presenta.

[3] DIAMNOND, Larry (1994a). “Introduction: Political Culture and Democracy”. In Political Culture & Democracy in Developing Countries. Boulder: Reinner, 1994, p. 21.

[4] www.ife.org.mx/documentos/DECEYEC/la_cultura_politica_democratica.htm#presenta.

[5] Idem.

[6] DIAMOND, ibidem, p. 22.

[7] www.ife.org.mx/documentos/DECEYEC/la_cultura_politica_democratica.htm#presenta.

[8] SOUZA SANTOS, Boaventura de (2007). Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez Editora, p. 68.

[9] Idem, p. 79.

[10] DAHL, ibidem, p. 174

[11] SOUZA SANTOS, ibidem, p. 69

[12] Ibidem, p. 70.

[13] Em sua posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Joaquim Barbosa manifestou a enésima crítica a este respeito. Cf. Joaquim Barbosa pede aprimoramento da Justiça, disponível em http://congressoemfoco.uol.com.br.

[14] https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_icj_1sem2017.pdf

[15] https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/relatorio_icj_1sem2017.pdf

[16] PRZEWORSKI, Adam (1984). Ama a incerteza e serás democrático. In: Novos Estudos CEBRAP, n.º 9, jul./1984, pp 36-46. Lido em cópia reprográfica.

[17] Aqui, utilizo parâmetros conceituais propostos em ZAFFARONI, Eugenio Raúl (1995). Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais,

passim.

[18] Nesse sentido, HARRISON, Lawrence (2002). “Introdução”. In HARRISON, Lawrence E. e HUNTINGTON, Samuel (orgs.)(2002) A cultura importa. Rio de Janeiro: Record, p. 30.

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