Bolsonaro, um inimigo do povo
- Hugo C. Melo Filho
- 14 de abr. de 2020
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Hugo Cavalcanti Melo Filho
Em 1882, o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen publicou a peça Um inimigo do povo. Trata-se de ácida crítica à manipulação midiática, à “opinião pública”, à opressão do pensamento único, à prevalência dos interesses econômicos sobre os sociais, aos governos e aos partidos. Ibsen ataca a institucionalidade, aproximando-se das ideias anarquistas da época. Opõe o idealismo ao pragmatismo político e às normas sociais corruptas, enfim à hipocrisia institucionalizada.
Na peça, Thomas Stockmann é um homem de ciência, médico da Estação Balneária, que é a principal fonte de renda da cidade e dos proprietários locais. Ele descobre que as águas do balneário estão seriamente infectadas por toda sorte de germes, que têm causado doenças na população local e nos turistas. Então, elabora um relatório científico, apontado os detalhes de sua descoberta e resolve publicá-lo na Voz do Povo, jornal local. Ocorre que o irmão do médico, Peter Stolckmann, é o prefeito do município e se opõe vigorosamente ao propósito de denúncia das condições sanitárias do balneário. Primeiro, Peter convence os editores do jornal a não publicarem o artigo do irmão e divulga denúncia em desfavor dele. Depois, transforma uma palestra convocada pelo médico em assembleia popular, para impedi-lo de falar e, mais ainda, para declará-lo inimigo público.
Thomas Stockmann é despedido do cargo de médico do balneário, perde toda a clientela no consultório, vê os filhos discriminados na escola e a família deserdada pelo sogro, principal acionista da Estação Balneária, sofre toda forma de hostilidade dos concidadãos que, manipulados pela imprensa, pelas elites e pelos políticos, o veem como inimigo do povo. Mas não se afasta de seus padrões éticos e do ideal de formação de uma nova ordem social mais justa e solidária.
Jair Bolosnaro é uma espécie de anti-Stockmann. Enquanto o doutor Stockmann lutou com todas as forças para fazer prevalecer a verdade e evitar a contaminação da população, Bolsonaro está em guerra para difundir a mentira e expor o povo brasileiro ao coronavírus. Ou ainda, enquanto a consciência científica internacional e a maioria dos governadores brasileiros seriam Thomas Stockmann, Bolsonaro seria Peter Stockmann, o prefeito. A opinião pública foi manipulada para considerar Thomas Stockmann inimigo do povo pelas qualidades que ele apresentava. Bolsonaro é inimigo do povo brasileiro, por seus inúmeros e reais defeitos.
No dia 14 de abril de 2020, o jornal The Washington Post, em editorial intitulado "Líderes arriscam vidas minimizando o coronavírus. Bolsonaro é o pior", classificou o comportamento do presidente brasileiro em face da crise da coronavírus como "de longe, o caso mais grave de improbidade" entre todos os líderes mundiais. Com muita razão.
O primeiro caso constatado de Covid-19 no Brasil ocorreu em 26 de fevereiro de 2020. A primeira morte ocorreu em 16 de março. Desde que retornou dos Estados Unidos da América, em meados de março, Bolsonaro iniciou uma cruzada contra o isolamento e a favor do uso da cloroquina, como panaceia para todos os males da Covid-19.
Pelo menos vinte e cinco pessoas de sua comitiva testaram positivo para o vírus. O filho Eduardo informou que também o presidente testara positivo, como noticiou a Fox, depois desmentida pelo informante. Bolsonaro se nega, até hoje, a divulgar o resultado de seus exames e sobre ele foi decretado sigilo. Em atos falhos, disse que se uma facada não derrubou, não seria uma gripezinha que o faria e que, caso fosse acometido, nada sofreria, por seu passado de atleta.
O comportamento inicial de Bolsonaro foi de mimetização da postura de Donald Trump, de caráter negacionista da gravidade da Covid-19. Ocorre que mesmo quando Trump foi forçado pelas evidências a alterar o discurso, Bolsonaro o sustentou. Em pronunciamentos em cadeia nacional, minimizou a gravidade e o alcance do problema, condenou os governadores que procuram seguir a orientação da Organização Mundial da Saúde, promovendo o isolamento pleno, e, acima de tudo, posicionou-se contra as orientações do Ministro da Saúde que integra a cúpula do seu governo.
Em outra vertente, passou a defender o uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento de todos os casos de Covid-19. Foi noticiado que ordenou a produção massiva do remédio. A droga, conhecida há quase oitenta anos, já vinha sendo utilizada em casos extremos, em vários países, sem eficácia comprovada. Alguns países já proibiram o uso da cloroquina, por conta dos graves efeitos colaterais que produz, inclusive problemas cardíacos e mortes. Há centenas de estudos em andamento sobre o uso desta e de outras drogas preexistentes, que apontam, inclusive, remédios de maior eficácia do que ela. Bolsonaro ideologizou a cloroquina, ao ponto de serem taxados de “comunistas”, por seus seguidores, médicos e políticos que, sem afastar a eventual confirmação de compatibilidade dela, advertem para a falta de comprovação científica da eficiência da cloroquina e os consequentes efeitos nefastos que podem advir do uso.
Bolsonaro sabota o isolamento social, tentando desfazer medidas adotadas nos Estados, incentivando passeatas de apoiadores (tendo participado de uma delas, em Brasília), ridicularizando as iniciativas protetivas da população, sustentando a narrativa que opõe a proteção da vida das pessoas à salvaguarda da economia, suspendendo o monitoramento dos deslocamentos, apostando na subnotificação de mortes, divulgando, com estardalhaço, passeios pelo comércio de Brasília e confraternização com simpatizantes, que não fazia no período anterior. Em sua ultima aparição na televisão, chegou a dizer que o vírus já está indo embora.
Como resultado, os indicadores revelam uma diminuição da adesão ao isolamento, que ampliará a transmissão do vírus, no momento em que já há mais de 1.500 mortos e 25.000 casos confirmados no Brasil, sem que se saiba se tais dados refletem a realidade, uma vez que são testados apenas 700 a cada 1 milhão de pessoas no país.
Em alguns Estados da federação, já se anuncia o colapso do sistema de saúde. Há especialistas afirmando que, em breve, pessoas estarão morrendo em casa, por falta de leitos disponíveis, como vem ocorrendo, de forma dramática, no Equador. Embaixadores de países europeus recomendam fortemente que seus cidadãos deixem o país. Prenuncia-se uma catástrofe sanitária e humanitária. Mas Bolsonaro não arreda pé de sua posição. Há quem a qualifique de estupidez, há quem a compreenda como cálculo eleitoral ou mesmo utilitarista, há os que vislumbram pura e simples crueldade, simbolizada por seus apoiadores que carregavam um caixão, ao som da música Astronomia, em alusão a meme que viralizou na Internet.
Em 9 de abril, o The Economist publicou:
“Jair Bolsonaro se isola, de maneira errada. O tratamento imprudente dado pelo presidente brasileiro à Covid-19 voltará para assombrá-lo. Um homem que teme a traição e tem necessidade perpétua de provocar, ele foi recebido com abraços e selfies em uma manifestação em seu apoio e contra o Congresso, em 15 de março. Mesmo para seus próprios padrões, a violação de Bolsonaro de seu dever principal de proteger vidas foi longe demais. Grande parte do governo o trata como um parente difícil que mostra sinais de insanidade. Bolsonaro é apoiado por um pequeno círculo de fanáticos ideológicos que incluem seus três filhos, pela fé de muitos protestantes evangélicos e pela falta de informações sobre a Covid-19 entre alguns brasileiros. Os dois últimos fatores podem mudar à medida que o vírus atinge seu pico fatal nos próximos meses."
De fato, o Brasil é campo fértil para a proliferação da desinformação e da negação da realidade protagonizadas por Bolsonaro. A pesquisa Wellcome Global Monitor 2018 mostrou que apenas 13% dos brasileiros têm muita confiança na ciência, enquanto 35% desconfiam dela e 25% acreditam que a produção científica não contribui para o país. Metade dos brasileiros consideram que a ciência contraria a religião e, dentre estes, 3 em cada quatro preferem seguir a religião."
Bolsonaro sabe disso e com isso conta. Quer que as pessoas ignorem as recomendações da ciência, a voz do bom senso e os fatos, que sigam suas vidas, que sejam todas logo contaminadas, ainda que milhares morram, para que se normalize a atividade produtiva. Sobrepõe, claramente, os interesses econômicos à vida dos seus concidadãos. Por tal haverá de responder, a tempo e a modo, esse inimigo do povo.
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